A Cura
Published by Adriana Neumann under on 10:13:00 PM
Há algum tempo, eu comecei a contar a saga de Calíope, jovem executiva, independente e bem sucedida, mas também romântica e sonhadora.
Calíope foi construída a partir de uma pessoa que conheço muito bem: eu mesma. As histórias dela tem um quê de autobiografia com muitas doses de ficção. Justamente por causa dessa mistura, o leitor nunca ficará sabendo o que é verdade real e o que é verdade inventada, cabendo a ele decidir o que aconteceu de fato, tendo como fundamento único a sua imaginação.
Pois bem, relembrando os acontecimentos, Calíope, após ter pegado o buquê de noiva no casamento de sua amiga, resolve que é hora de buscar seu príncipe encantado. Um dia, no escritório, fazendo uma pesquisa, descobre uma dissertação de um certo F. C. Moura sobre ataxia espinocerebelar autossômica e decide que ele é o homem de sua vida.
No entanto, alguns dias depois, ela leva um tombo, caindo de bunda no chão, e conhece Augusto, que a socorre. No afã de conquistá-lo, diz que sofre de ataxia espinocerebelar autossômica e ele se comove, beija-a profundamente e os dois se apaixonam.
Contudo, Augusto fala para seu tio, médico, do problema de sua amada e este decide ajudá-la, encaminhando-a para um especialista. Calíope, perfeitamente saudável, se desespera, pois Augusto descobrirá que ela havia mentido sobre sua doença e talvez nunca mais a perdôe.
(Huuummm, a história está ganhando contornos de novela mexicana - acho que a autora, incapacitada de se locomover, anda vendo Caminho das Índias demais. Enfim, prossigamos...)
Já era madrugada e Calíope não conseguia dormir. Havia inventado aquela história de ataxia espinocerebelar autossômica pra ganhar um namorado. Golpe baixo, ela sabia, mas tinha dado certo. Só que agora aquilo já tinha virado uma bola de neve e provocado uma avalanche.
Se contasse a verdade para Augusto, ela tinha a certeza de que ele nunca mais iria olhar na sua cara. Se não contasse, ele iria descobrir de qualquer jeito, quando o Dr. Raimundo Gouvêa dissesse que sua saúde era perfeita e que nunca, nem de longe, ela poderia ter ou ter tido aquela doença.
Aí a vaca iria pro brejo definitivamente, ela seria publicamente envergonhada e reduzida a poeira cósmica, sem direito a um ai. Portanto, aquela era hora de pensar num plano e era isso que ela fazia olhando para a TV.
Foi aí que ela teve uma idéia brilhante, inspirada no que via naquele momento: um homem de terno, que se apresentava como o Apóstolo Yan Naity Portela e falava alguma coisa sobre prosperidade, resolução de problemas e quebra de maldições, convidando os telespectadores para os cultos em sua igreja - a Comunidade Pentecostal do Fogo Azul dos Santos Avatares da Prosperidade Amém - e dizendo, em tom inflamado: 'pare de sofrer, meu irmããããão!', com nítido sotaque carioca.
Ela tratou de anotar logo o endereço da comunidade o os horários dos cultos (chamados de encontros pelo apóstolo) e deu um sorrisinho: havia criado o plano perfeito. Aquilo, sim, era uma revelação, algo que a tiraria da enrascada em que se metera, melhor que contar a verdade, muito melhor!
No dia seguinte, disse ao namorado que havia encontrado a solução para os seus problemas, que agora sabia que eles eram espirituais. Que a sua doença era resultado de um encosto. Que precisava entrar em contato com o infinito cósmico e com seu eu interior. E que a cura estava na Comunidade Pentecostal do Fogo Azul dos Santos Avatares da Prosperidade Amém.
Augusto foi contra, mas resolveu vencer seu preconceito e acompanhar Calíope ao tal econtro. No entanto, resolveu que iria permanecer lúcido e cético até o fim, já que uma igreja com aquele nome não lhe inspirava nenhuma confiança. Assim, no domingo seguinte, nosso lindo casal se dirigiu ao templo. Ela, feliz porque seu plano estava dando certo; ele, completamente desconfiado.
Ao chegar ao destino, deram com uma moça gordinha e sorridente que funcionava como recepcionista e desejava a paz do Senhor a todos. Calíope se sentiu mal, porque a piedosa irmã lhe olhou dos pés à cabeça e quase lhe pediu para dar uma voltinha. Agora estava achando que foi uma péssima idéia vir com seu Dolce novo, o sapatos Prada e a Chanel 2.55. Afinal, estava estampada na cara: 'RICA', o que para certas igrejas significa gordos dízimos e ofertas. Mas, ela já estava lá e o melhor a fazer era continuar o teatro.
- Paz do Senhor, sou a irmã Sarah Rebeca, sejam bem vindos. É a primeira vez? Aahhh, o Senhor seja louvado por suas vidas! Aproveitem e fiquem com esse envelopinho, é pra hora das ofertas - disse a calorosa anfitriã, dando uma piscadinha.
Entraram e se sentaram nas primeiras cadeiras que viram vazias. A igreja estava lotada, já que, naquela noite, o próprio apóstolo iria ministrar a palavra.
- Vai ser uma bênção, vai se tremendo! Ohhhh aleluuuuiaa!!!
Era a voz da irmã que havia sentado ao lado de Calíope e lhe explicado o motivo de tanto alvoroço.
Então, o povo aquietou-se, era hora de começar o culto, ou melhor, o encontro. Começou a música instrumental. Alguns acordes e o cantor iniciou um recitativo:
- Oh aleluuuia, aleluia, aleluia, aleluia, aleluia. Ooooohhhh amém! Amém! Améééém!!!
Começa a chorar:
- Siiiim, oh glória, amém, aleluuuuiiiiaaa. Decôuvias. Bachúrias. Amémmmm. Ohhhhh Senhoooorrr!!!!!
E agora aos prantos:
- Ohhh aleluia... chumégias... a noiva... a noiva... a noiva... chuva... chuva... chuuuuuva... panúvias... bromélias... broxuras... Amém, pessoal?
- AMÉÉÉÉM!!!
- Então, palmas pra Jesus.
O povo explodia em palmas. Alguns choravam, outros batiam os pés. A vizinha de banco de Calíope, até então comportada, começou a rodopiar.
- Augusto, você entendeu alguma coisa.
- Eu não, e você?
- Nada.
- Então, vam'bora Calíope! Você quer continuar fazendo parte dessa maluquice?
- Augusto, eu sinto que alguma coisa especial vai acontecer, que eu vou ser curada. Não, eu vou ficar!
Todos se acalmaram e tomaram seus lugares para esperar o apóstolo, que subiu ao púlpito sob as manifestações entusiasmadas dos fiéis, e começou seu discurso:
- Paz do Senhor, irmãos!!
- Paz do Senhor!!
- Ehhh, 'tá fraco... o Senhor não quer gente fraca não!! PAZ DO SENHOR, IRMÃOS!!
- PAZ DO SENHOOOOOOOORRRRR!!!
Augusto já achou estranho aquele começo. Ele foi bom aluno na catequese e estava se lembrando de que, em algum lugar da Bíblia, se dizia que na fraqueza é que éramos forte. Então, como é que o Senhor não ia querer gente fraca na sua igreja? Pensou que estava sendo crítico demais e continuou a ouvir a prédica.
- Irmãos, estamos num ano profético e temos que levantar um louvor profético pra o Senhor. O diabo está rondando... o diabo quer te levar... temos que nos cobrir com um manto profético! Repita para o irmão que está do seu lado: temos que ter um manto profético.
Calíope e Augusto ficaram com vontade de rir quando repetiram as palavras, mas, já que estavam lá, tinham que fazer como todo mundo.
- Mas, tenho um novidade para você, irmão: o Senhor tem um propósito pra sua vida!
- Aahh que lindo, Augusto... ele disse que Deus tem um propósito pra minha vida.
- Huuumpf, grande novidade... Deus tem um propósito pra todo mundo, né?
Augusto achava tudo muito estranho. Afinal, já eram 20 minutos de falação e nem uma leitura bíblica, nada. Só coisas estranhas, como manto, dia profético, ano profético, louvor profético. Daqui a pouco, haveria a água profética, o violão profético e os equipamentos de torno e fresa proféticos. E o que era aquela gritaria? A irmã ao lado já estava rouca e, ao que parece, torceu o joelho quando se jogou no chão no momento em que o apóstolo proferiu, aos berros, as palavras proféticas:
- Pramérias mascóvias turmecoratimoraxúrias, irmmããããão!!!!!!!
Naquele momento, Augusto até chegou a sentir saudade do tempo das missas do Frei Anselmo do colégio de padres, em que havia primeira leitura, segunda leitura e mensagem do evangelho.
Chegou o momento da cura e libertação. O apóstolo esclareceu que todos os males que cercavam as pessoas tinham origem na falta de fé, que se manifestava quando o irmão não liberava ou não devolvia o dízimo ao Senhor. Ainda disse que, quanto mais ele desse, mais demonstraria ter fé. Se muito desse, as portas do céu se abririam e ele seria curado e teria muita prosperidade.
Calíope achou tudo uma grande maluquice, mas fez sua oferta quando a sacolinha foi passada. O irmão que a segurava estranhou que ela tivesse dado apenas R$ 5,00, logo ela, toda cheia de joias e roupas de griffe. Devia ser daquelas infiéis que nunca seriam curadas.
E seguiu-se o apelo:
- Irrrmão, Deus quer te ver curaaado, amém? Quem tem doença, quem tem fé, quem liberou uma oferta generosa ao céu venha aqui na frente.
Calíope, claro, foi a primeira da fila. Afinal, ela estava lá justamente para isso e seguiria firme com seus planos.
- Teu nome, minha irrrmã.
- Calíope.
- Teu nome é pagão. Teu nome é de um demônio da Grécia e foi através do teu nome que o diabo entrou no teu corpo e te deixou essa doença.
E com a mão na testa de Calíope, o apóstolo grita:
- Renuncia a esse nome agoooora e seja curada!!! Eu determino que todo espírito de ... como é o nome da tua doença, irmã?
- Ataxia espinocerebelar autossômica.
- Eu determino que todo espírito dessa doença aí se retire do corpo dessa irrrmã!!! Amééém?
E o povo:
- AMÉÉÉÉÉM!!!!!
- Então, palmas pra Jesus.
Calíope voltou para seu banco, sob os brados de 'oh glória!' dos fiéis. Chegou ao fim da reunião com aquele sorrisinho de satisfação, já que seus planos foram executados com invejável perfeição.
No dia seguinte, foi ao consultório do neurologista e recebeu a confirmação de sua cura.
Augusto, cego de amor, comemorou o milagre com sua namorada e, embora ainda cético, passou a crer firmemente que Deus nos faz trilhar caminhos misteriosos.
Calíope sentia-se verdadeiramente liberta, pelo menos da afleutomitoxina e do ostenodiprazol, tomados religiosamente desde o começo do teatro.
E ainda naquela semana, ela comprou uma bíblia.
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Para entender a saga:
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/passaporte.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/santo.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/no-amor-e-na-guerra.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/verdade.html
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Quem me conhece e tem sagacidade, bom humor e inteligência, vai saber que eu aqui não tenho intenção de ridicularizar a religião em geral. Mas, não tenho pudores em fazer uma caricatura de certas loucuras travestidas de igreja.
Ao mesmo tempo, creio que o Evangelho não tem dono e Deus se anuncia onde e quando quer, o que bem se comprova com a compra da bíblia por Calíope.
Mas, isso já é outra história.
Calíope foi construída a partir de uma pessoa que conheço muito bem: eu mesma. As histórias dela tem um quê de autobiografia com muitas doses de ficção. Justamente por causa dessa mistura, o leitor nunca ficará sabendo o que é verdade real e o que é verdade inventada, cabendo a ele decidir o que aconteceu de fato, tendo como fundamento único a sua imaginação.
Pois bem, relembrando os acontecimentos, Calíope, após ter pegado o buquê de noiva no casamento de sua amiga, resolve que é hora de buscar seu príncipe encantado. Um dia, no escritório, fazendo uma pesquisa, descobre uma dissertação de um certo F. C. Moura sobre ataxia espinocerebelar autossômica e decide que ele é o homem de sua vida.
No entanto, alguns dias depois, ela leva um tombo, caindo de bunda no chão, e conhece Augusto, que a socorre. No afã de conquistá-lo, diz que sofre de ataxia espinocerebelar autossômica e ele se comove, beija-a profundamente e os dois se apaixonam.
Contudo, Augusto fala para seu tio, médico, do problema de sua amada e este decide ajudá-la, encaminhando-a para um especialista. Calíope, perfeitamente saudável, se desespera, pois Augusto descobrirá que ela havia mentido sobre sua doença e talvez nunca mais a perdôe.
(Huuummm, a história está ganhando contornos de novela mexicana - acho que a autora, incapacitada de se locomover, anda vendo Caminho das Índias demais. Enfim, prossigamos...)
Já era madrugada e Calíope não conseguia dormir. Havia inventado aquela história de ataxia espinocerebelar autossômica pra ganhar um namorado. Golpe baixo, ela sabia, mas tinha dado certo. Só que agora aquilo já tinha virado uma bola de neve e provocado uma avalanche.
Se contasse a verdade para Augusto, ela tinha a certeza de que ele nunca mais iria olhar na sua cara. Se não contasse, ele iria descobrir de qualquer jeito, quando o Dr. Raimundo Gouvêa dissesse que sua saúde era perfeita e que nunca, nem de longe, ela poderia ter ou ter tido aquela doença.
Aí a vaca iria pro brejo definitivamente, ela seria publicamente envergonhada e reduzida a poeira cósmica, sem direito a um ai. Portanto, aquela era hora de pensar num plano e era isso que ela fazia olhando para a TV.
Foi aí que ela teve uma idéia brilhante, inspirada no que via naquele momento: um homem de terno, que se apresentava como o Apóstolo Yan Naity Portela e falava alguma coisa sobre prosperidade, resolução de problemas e quebra de maldições, convidando os telespectadores para os cultos em sua igreja - a Comunidade Pentecostal do Fogo Azul dos Santos Avatares da Prosperidade Amém - e dizendo, em tom inflamado: 'pare de sofrer, meu irmããããão!', com nítido sotaque carioca.
Ela tratou de anotar logo o endereço da comunidade o os horários dos cultos (chamados de encontros pelo apóstolo) e deu um sorrisinho: havia criado o plano perfeito. Aquilo, sim, era uma revelação, algo que a tiraria da enrascada em que se metera, melhor que contar a verdade, muito melhor!
No dia seguinte, disse ao namorado que havia encontrado a solução para os seus problemas, que agora sabia que eles eram espirituais. Que a sua doença era resultado de um encosto. Que precisava entrar em contato com o infinito cósmico e com seu eu interior. E que a cura estava na Comunidade Pentecostal do Fogo Azul dos Santos Avatares da Prosperidade Amém.
Augusto foi contra, mas resolveu vencer seu preconceito e acompanhar Calíope ao tal econtro. No entanto, resolveu que iria permanecer lúcido e cético até o fim, já que uma igreja com aquele nome não lhe inspirava nenhuma confiança. Assim, no domingo seguinte, nosso lindo casal se dirigiu ao templo. Ela, feliz porque seu plano estava dando certo; ele, completamente desconfiado.
Ao chegar ao destino, deram com uma moça gordinha e sorridente que funcionava como recepcionista e desejava a paz do Senhor a todos. Calíope se sentiu mal, porque a piedosa irmã lhe olhou dos pés à cabeça e quase lhe pediu para dar uma voltinha. Agora estava achando que foi uma péssima idéia vir com seu Dolce novo, o sapatos Prada e a Chanel 2.55. Afinal, estava estampada na cara: 'RICA', o que para certas igrejas significa gordos dízimos e ofertas. Mas, ela já estava lá e o melhor a fazer era continuar o teatro.
- Paz do Senhor, sou a irmã Sarah Rebeca, sejam bem vindos. É a primeira vez? Aahhh, o Senhor seja louvado por suas vidas! Aproveitem e fiquem com esse envelopinho, é pra hora das ofertas - disse a calorosa anfitriã, dando uma piscadinha.
Entraram e se sentaram nas primeiras cadeiras que viram vazias. A igreja estava lotada, já que, naquela noite, o próprio apóstolo iria ministrar a palavra.
- Vai ser uma bênção, vai se tremendo! Ohhhh aleluuuuiaa!!!
Era a voz da irmã que havia sentado ao lado de Calíope e lhe explicado o motivo de tanto alvoroço.
Então, o povo aquietou-se, era hora de começar o culto, ou melhor, o encontro. Começou a música instrumental. Alguns acordes e o cantor iniciou um recitativo:
- Oh aleluuuia, aleluia, aleluia, aleluia, aleluia. Ooooohhhh amém! Amém! Améééém!!!
Começa a chorar:
- Siiiim, oh glória, amém, aleluuuuiiiiaaa. Decôuvias. Bachúrias. Amémmmm. Ohhhhh Senhoooorrr!!!!!
E agora aos prantos:
- Ohhh aleluia... chumégias... a noiva... a noiva... a noiva... chuva... chuva... chuuuuuva... panúvias... bromélias... broxuras... Amém, pessoal?
- AMÉÉÉÉM!!!
- Então, palmas pra Jesus.
O povo explodia em palmas. Alguns choravam, outros batiam os pés. A vizinha de banco de Calíope, até então comportada, começou a rodopiar.
- Augusto, você entendeu alguma coisa.
- Eu não, e você?
- Nada.
- Então, vam'bora Calíope! Você quer continuar fazendo parte dessa maluquice?
- Augusto, eu sinto que alguma coisa especial vai acontecer, que eu vou ser curada. Não, eu vou ficar!
Todos se acalmaram e tomaram seus lugares para esperar o apóstolo, que subiu ao púlpito sob as manifestações entusiasmadas dos fiéis, e começou seu discurso:
- Paz do Senhor, irmãos!!
- Paz do Senhor!!
- Ehhh, 'tá fraco... o Senhor não quer gente fraca não!! PAZ DO SENHOR, IRMÃOS!!
- PAZ DO SENHOOOOOOOORRRRR!!!
Augusto já achou estranho aquele começo. Ele foi bom aluno na catequese e estava se lembrando de que, em algum lugar da Bíblia, se dizia que na fraqueza é que éramos forte. Então, como é que o Senhor não ia querer gente fraca na sua igreja? Pensou que estava sendo crítico demais e continuou a ouvir a prédica.
- Irmãos, estamos num ano profético e temos que levantar um louvor profético pra o Senhor. O diabo está rondando... o diabo quer te levar... temos que nos cobrir com um manto profético! Repita para o irmão que está do seu lado: temos que ter um manto profético.
Calíope e Augusto ficaram com vontade de rir quando repetiram as palavras, mas, já que estavam lá, tinham que fazer como todo mundo.
- Mas, tenho um novidade para você, irmão: o Senhor tem um propósito pra sua vida!
- Aahh que lindo, Augusto... ele disse que Deus tem um propósito pra minha vida.
- Huuumpf, grande novidade... Deus tem um propósito pra todo mundo, né?
Augusto achava tudo muito estranho. Afinal, já eram 20 minutos de falação e nem uma leitura bíblica, nada. Só coisas estranhas, como manto, dia profético, ano profético, louvor profético. Daqui a pouco, haveria a água profética, o violão profético e os equipamentos de torno e fresa proféticos. E o que era aquela gritaria? A irmã ao lado já estava rouca e, ao que parece, torceu o joelho quando se jogou no chão no momento em que o apóstolo proferiu, aos berros, as palavras proféticas:
- Pramérias mascóvias turmecoratimoraxúrias, irmmããããão!!!!!!!
Naquele momento, Augusto até chegou a sentir saudade do tempo das missas do Frei Anselmo do colégio de padres, em que havia primeira leitura, segunda leitura e mensagem do evangelho.
Chegou o momento da cura e libertação. O apóstolo esclareceu que todos os males que cercavam as pessoas tinham origem na falta de fé, que se manifestava quando o irmão não liberava ou não devolvia o dízimo ao Senhor. Ainda disse que, quanto mais ele desse, mais demonstraria ter fé. Se muito desse, as portas do céu se abririam e ele seria curado e teria muita prosperidade.
Calíope achou tudo uma grande maluquice, mas fez sua oferta quando a sacolinha foi passada. O irmão que a segurava estranhou que ela tivesse dado apenas R$ 5,00, logo ela, toda cheia de joias e roupas de griffe. Devia ser daquelas infiéis que nunca seriam curadas.
E seguiu-se o apelo:
- Irrrmão, Deus quer te ver curaaado, amém? Quem tem doença, quem tem fé, quem liberou uma oferta generosa ao céu venha aqui na frente.
Calíope, claro, foi a primeira da fila. Afinal, ela estava lá justamente para isso e seguiria firme com seus planos.
- Teu nome, minha irrrmã.
- Calíope.
- Teu nome é pagão. Teu nome é de um demônio da Grécia e foi através do teu nome que o diabo entrou no teu corpo e te deixou essa doença.
E com a mão na testa de Calíope, o apóstolo grita:
- Renuncia a esse nome agoooora e seja curada!!! Eu determino que todo espírito de ... como é o nome da tua doença, irmã?
- Ataxia espinocerebelar autossômica.
- Eu determino que todo espírito dessa doença aí se retire do corpo dessa irrrmã!!! Amééém?
E o povo:
- AMÉÉÉÉÉM!!!!!
- Então, palmas pra Jesus.
Calíope voltou para seu banco, sob os brados de 'oh glória!' dos fiéis. Chegou ao fim da reunião com aquele sorrisinho de satisfação, já que seus planos foram executados com invejável perfeição.
No dia seguinte, foi ao consultório do neurologista e recebeu a confirmação de sua cura.
Augusto, cego de amor, comemorou o milagre com sua namorada e, embora ainda cético, passou a crer firmemente que Deus nos faz trilhar caminhos misteriosos.
Calíope sentia-se verdadeiramente liberta, pelo menos da afleutomitoxina e do ostenodiprazol, tomados religiosamente desde o começo do teatro.
E ainda naquela semana, ela comprou uma bíblia.
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Para entender a saga:
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/passaporte.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/santo.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/no-amor-e-na-guerra.html
http://adrialactaest.blogspot.com/2009/01/verdade.html
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Quem me conhece e tem sagacidade, bom humor e inteligência, vai saber que eu aqui não tenho intenção de ridicularizar a religião em geral. Mas, não tenho pudores em fazer uma caricatura de certas loucuras travestidas de igreja.
Ao mesmo tempo, creio que o Evangelho não tem dono e Deus se anuncia onde e quando quer, o que bem se comprova com a compra da bíblia por Calíope.
Mas, isso já é outra história.
1 comentários:
kkkkkkkkkkkkkkk... "demônio da Grécia" é pacabá!!!!!!
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