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Eulália e as Batatas

Published by Adriana Neumann under on 3:12:00 PM
Era sexta-feira. O céu estava estrelado e a brisa calma e fresca do verão entrava pela sala, que tinha as portas escancaradas para a noite cheia de promessas.

Sentado em sua poltrona, estava Pedro Afonso, grisalho, altivo, elegante, desembargador, filósofo, autor de muitos livros, conferencista de sucesso, fumando seu cachimbo e lendo Proust.

Ao piano, ela. A bela Eulália, musa de uma geração, exímia pianista, professora universitária nos cursos de Sociologia e Antropologia, dedilhava alguma coisa de Liszt.

Logo chegaria sua filha adolescente com o novo namorado, para jantar e apresentá-lo aos pais. Dias antes, havia dado a notícia do romance em casa, acrescentando que o rapaz seria seu par no baile de debutantes no clube de campo da cidade, onde Eulália era diretora social e onde aconteciam as melhores e mais elegantes festas da região.

A menina era uma graça. Numa daquelas felicidades genéticas, Letícia unira o porte elegante e a altura do pai à beleza morena da mãe, sem rejeitar a inteligência dos dois. Seus olhos negros sempre curiosos diziam que ela jamais seria apenas mais uma mulher no mundo. Faria, sim, a diferença. E para melhor.

Assim, enquanto sua música fluia, Eulália pensava no belo rapaz loiro, alto e de olhos azuis que entraria garboso por aquela porta e encantaria o casal de futuros sogros com seu ar nobre, seus gestos refinados e sua inteligência incomum. Imaginava-o recitando Neruda para sua amada e com ela flutuando pelos salões numa valsa, assim como ela um dia flutuara nos braços de Pedro Afonso.

E ainda perdida em seus pensamentos, Eulália ouve uma voz:

- Oi mãe!

Ela se vira e fica sem palavras.

- Esse aqui é o Batata. Batata, essa aqui é a minha mãe.

Eulália pensa: "Legal. Bacana. Trocentos anos de estudo, dois doutorados e a gente passa a ser só 'a minha mãe'. De que adiantou seis meses entre os índios de Cochabaiacu-Açu pra defender aquela tese em Harvard? Não senhora, não sou só 'a minha mãe'. Sou muito mais que isso! Calma Eulália, você não pode se contrariar. Como é aquele mantra que aprendi entre os nativos do Qualquercoisaquistão? Ohhhmmm.... ohhhmmmm... Mas, p&$%@*pq! Por todos os deuses e forças invisíveis da terra, do fogo, da água e do ar, me digam: Batata!!! que nome é esse? E o que é este projeto rejeitado de ser humano que se materializou na minha frente? E olha que eu já estive diante de humanos de todas as tribos e todas as raças, com as tatuagens mais loucas e com piercings enfiados em todos os buracos possíveis e impossíveis... Eis que agora me deparo com uma batata anêmica, raquítica, cheia de furos e metais - nos lugares visíveis do corpo e nos dentes -, com um esfregão preto no lugar do cabelo e um bigodinho... gente, o que é esse bigodinho? Até meu buço que tirei a laser no consultório do Dr. Eurípedes era mais grosso que esse esboço de moustache... E o que é essa roupa, meu pai? Essa camiseta do defunto que era maior com essa bermuda xadrez ridícula, que parece que encolheu e mostrando esses cambitinhos cabeludos... Ô menino, onde você comprou isso tinha do teu tamanho? Ou ela veio do bazar do Exército da Salvação? Ah não, já sei, foi doação... até os pobres do Exército da Salvação rejeitaram essa coisa horrorosa que um dia deve ter sido chamada de traje."

Claro que tudo isso Eulália pensou em um segundo e não verbalizou, não só porque seria deselegante como também porque não se pode julgar alguém pela aparência. E o mais importante é que ela era uma mulher moderna e não podia se deixar levar por conceitos ultrapassados. Resolveu conhecer o menino um pouco mais, antes de formar sua opinião definitiva.

- Como vai, Batata (humpf...)? Seja bem vindo e sinta-se em casa.

- Valeu, sogrona. Eu 'tô aí com os mano e quero saber se eles pode entrar também.

- Sim, claro. Seus amigos são bem vindos também.

- Aê, senti firmeza na sogrona... toda bacana, toda na finura... aê gata, chama lá o Melão, o Tomate e o Macarrão pra nóis.

"Os mano... humpf... quem são esses mano, meu pai? E que nomes são esses? Se eu não fosse educada e ex-aluna do Sacre Coeur, eu iria perguntar se aquilo eram pessoas ou era uma despensa de cozinha ambulante. E que petulância é essa? Fazer de criadinha de recados minha filha, minha única filha, melhor aluna do colégio, a quem hei de deixar meu legado... e que som é esse que vem lá de fora? Que não seja a tal da banda Calypso".

Não era. Mas, a música vinha do Tempra 1993 tunado e 'ducarái', como disse mais tarde um dos vegetais que acompanhavam a batata-salsa-bigoduda e destruíram a paz sextafeirina daquele lar.

"Quer dançar, quer dançar, o tigrão vai te ensinar...
Ieieiê, ieieiê, o tigrão vai te comer..."

Era isso que saía do altofalante do carro (e pensar que instantes atrás se ouvia Liszt...) e destruía qualquer tentativa de aceitação daquela aberração transgênica que a chamava de sogrona. Agora era guerra! Aquele projeto de gente sumiria da face da terra ou ela não se chamava Eulália Marques do Amaral! Resolveu apelar.

- Diga-me, Batata (humpf...), o que você acha de Neruda?

- Ne o que? Ele tem uma banda?

- Não, ele é poeta.

- Aaahhh, tô ligado. Eu me amarro nessa coisa de poeta... eu até fiz uma letra pro MC Leozinho. Sabe aquela q diz assim: 'vou falar, vou falar, vou ligar pro celular...'? Pois é, é minha.

Naquele instante, Pedro Afonso resolveu intervir. Conhecia sua esposa pelo olhar e sabia muito bem que as coisas não iam bem para o lado de Batata. Nesse instante, segurou firme o braço de Eulália, antes que ela conseguisse avançar no pescoço do tubérculo.

Foi então que ela resolveu dar o golpe derradeiro:

- Meu marido está lendo Proust. Você lê, BATATA? Já passou pra cartilha ou ainda está no livrinho de colorir?

Batata, que não entendeu a ironia de sua sogra, respondeu:

- Ah sogrona, num gosto di lê naum... dá muito trabalho. Outro dia fui lê um gibi do Cebolinha e fiquei muito cansado.

- Claro, pensar cansa.

- Ihhh qualé sogrona, to te estranhando... tu tá mi tirando? sei não, acho que tu tá me zuando...

Antes que Eulália respondesse, Letícia voltou com os 'mano'. Eulália não podia deixar de rir com a cena bizarra, com alimentos invadindo sua linda sala, decorada com muito bom gosto por João Armentano.

- Aê, qual é a parada? Ehh, senti firmeza, mó mansão, toda purpurinada...

Claro que, para que pudessem ouvir o pancadão de dentro da casa, tiveram que aumentar o som do tal carro 'ducarái' (posteriormente batizado de carro dudemonho por Sara Rebeca, empregada da casa e crente). E para que conseguissem ouvir uns aos outros começaram a gritar. Eram sete pessoas na sala, mas parecia uma multidão, com todos falando ao mesmo tempo. A vizinhança, nada acostumada com aquela algazarra, principalmente na casa dos Marques de Amaral, trataram de chamar a polícia.

Nisso, toca o telefone e Pedro Afonso atende para ouvir uma voz constrangida do outro lado:

- Alô, doutor Pedro Afonso? Aqui é o cabo Maciel, da PM. É que os vizinhos do senhor 'tão reclamando de um baile funk que o senhor 'tá fazendo aí na sua casa... ahh não é o senhor, são os amigos da sua filha... quer que eu mande uma viatura?

- Não é necessário, eu mesmo acabarei com essa festa. Obrigado.

Pedro Afonso desligou o telefone já vermelho. Era um homem calmo e comedido, e até agora estava controlando a sua mulher. Mas, não ia deixar sua reputação tão arduamente conquistada cair na lama por conta de um quatrilho mal acabado. Silenciosamente foi ao seu escritório e pegou a 38 que guardava no cofre. Com ela entrou na sala, já atirando para cima.

- A bagunça vai acabar ou eu vou ter que chamar o camburão pra levar vocês?

O teto de gesso desenhado por Armentano estava destruído, mas a ordem estava sendo novamente instalada.

- Aê, foi mal, pintou sujeira. Vambora galera! Sogrão, sogrona, a genti si vê lá no baile das debutante.

"Baile das debutantes o c*&%@#", Eulália ainda quis responder. Mas, sua índole de boa moça, ex-aluna do Sacre-Coeur, a freou naquela hora.

Letícia foi para seu quarto aos prantos, desesperada porque acreditava ter perdido o grande amor da sua vida, sendo seu destino morrer solteirona e amarga. Eulália não teve pena:

- A senhorita está de castigo. A partir de hoje não põe mais os pés nesta casa pessoas com esses nomes. É comestível, fora! Entendeu, mocinha?

E foi para o quarto. Estava exausta, deprimida, parecia que o teto havia caído sobre sua cabeça. Tomou um calmante e foi dormir. No dia seguinte, acordou pior, com profundas olheiras negras e uma lacinante dor de cabeça.

Sara Rebeca, no melhor estilo cristão-solidário, profetizou:

- Fica assim não, dona Eulália, isso é coisa de criança e logo passa. Em todo caso, vou fazer uma corrente de sete semanas lá na minha igreja pra menina esquecer esse rapaz de vez. Mas, a gente tem que combinar o almoço. 'Tô pensando em fazer um filé com batatas gratinadas.

Ninguém entendeu quando Sara Rebeca foi parar no hospital com hematomas no corpo todo e duas costelas quebradas, depois de ter sido agredida pela patroa.

Eulália até hoje está em uma clínica para tratamento de transtornos diversos e não fala coisa com coisa. Tem alucinações e diz que o planeta está sendo invadido por batatas extraterrestres.

3 comentários:

Anônimo disse... @ 27 de janeiro de 2009 às 09:40

Meu Deus...
e eu sou mãe de menina, né? Ai meus sais aromáticos... fico até enjoada em pensar no pai da menina de peixeira em punho gritando pela sala.
"Ô disgaça!".

Adorei, adorei, adorei!

Os nomes, pra variar, estão ótimos!

Beijos

Christiane disse... @ 29 de janeiro de 2009 às 10:01

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk...

Ai amiga... Que medo... tenho 3 filhas, futura filósofa e já pensou ter de encarar o hortifruti futuramente também... Hoje em dia já estou quase louca.. Futuramente então, acho que vou acabar meus dias no juquiri... kkkkkkkkkkkkkkk

Mas muito divertido! AMEI!

Grande beijo.

Anônimo disse... @ 26 de agosto de 2009 às 08:26

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
Adorei essa história Tia.

Fred

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